Isso mesmo: precisamos sabotar o acordo se
quisermos mesmo evitar os efeitos de um aquecimento global descontrolado.
CLAUDIO ANGELO
04/11/2016 -
20h40 - Atualizado 05/11/2016 11h30
O ministro do
Exterior da França Laurent Fabius bate o martelo diante de representantes de
196 países para fechar o Acordo de Paris em dezembro de 2015 (Foto: Divulgação/
Departamento de Estado dos EUA)
O Acordo de Paris entrou em vigor
hoje (4), e muita gente boa o está comemorando como um marco histórico da
salvação da humanidade. Nas palavras da ONU, 4 de novembro de 2016 é o dia em
que nós “fechamos a porta para o desastre climático inevitável”. Lamento
estragar a festa, mas o único jeito de fechar a porta para o desastre climático
inevitável será um esforço global concertado e imediato para descumprir o novo
tratado do clima.
Isso mesmo: precisamos sabotar o
acordo se quisermos mesmo evitar os efeitos de um aquecimento global
descontrolado. E os líderes mundiais, especialmente os das grandes
nações poluidoras, têm de puxar a fila.
Não é que o Acordo de Paris não
esteja à altura da tarefa, ou tenha falhas incontornáveis, ou seja uma fraude,
como alguns dizem. Ao contrário. A nova lei internacional é o melhor
instrumento de que dispomos – a bem da verdade, o único – para assegurar um
combate universal, contínuo e equitativo às emissões de gases de efeito estufa.
Só que, se nós a executarmos passo a passo, de acordo com o manual, estaremos
lascados.
Porque Paris tem um problema sério de
timing
Pelo livrinho de instruções, o acordo
seria adotado em 2015, ratificado nos anos seguintes e só entraria em vigor em
2020. Os diplomatas teriam cinco anos inteiros para negociar a regulamentação
do tratado, que pode ser considerada com justiça uma das peças legais mais
complicadas já produzidas na história. Em 2018, todos os países se reuniriam
para avaliar o progresso feito e quão distantes nós estaríamos de estabilizar o
aquecimento em bem menos de 2 graus ou em 1,5 grau, como preconiza o acordo.
Apenas em 2020 as metas nacionais (as tais NDCs) começariam a ser implementadas
para valer. Em 2023 elas passariam pela primeira revisão, que só seria
implementada em 2026 ou 2031.
Esse é o calendário que foi possível
negociar na longa e tortuosa estrada que levou até a porta de Paris. Governos e
diplomatas estão confortáveis com isso. Só que esse calendário é impossível de
conciliar com o mundo real.
No mundo real, nós emitimos hoje 52
bilhões de toneladas de CO2 equivalente e precisaremos chegar a 2030 emitindo
no máximo 42 bilhões para ter pelo menos dois terços de chance de estabilizar a
temperatura em menos de 2 graus. As NDCs, se forem todas cumpridas, nos
deixarão em 2030 com 54 bilhões ou 56 bilhões de toneladas.
No mundo real, hoje já não temos mais
do que uma chance em duas de evitar que a temperatura ultrapasse 1,5 grau, por
mais que façamos de agora em diante (e não estamos fazendo muito).
No mundo real, a janela para alguma
chance de 1,5 grau se fecha precisamente em 2020, segundo o mais recente
relatório da ONU sobre emissões, publicado na quinta-feira (3). Ou seja, quando
nossos brilhantes negociadoress tiverem resolvido os últimos detalhes que
faltam para tornar o Acordo de Paris completamente operacional, as pequenas
nações insulares e o gelo do Oceano Ártico estarão condenados.
É chato, mas o mundo real não está
nem aí para as dificuldades de nosso sistema político.
A razão do descompasso é que o acordo
universal fechado em Paris deveria ter sido adotado lá atrás, na malfadada
conferência de Copenhague, em 2009. Dessa forma, em 2020 nós poderíamos ter
sido capazes de produzir uma inflexão na curva de emissões de gases de efeito
estufa que nos deixassem numa trajetória compatível com 2 graus, o tal “limite
de segurança” do sistema climático. Não foi possível na ocasião – os EUA e a
China simplesmente não estavam a fim. Perdemos uma década de ação substantiva,
que vai fazer falta.
Estudo após estudo tem mostrado que
as NDCs nos deixam numa trajetória de 3 graus de aquecimento ou mais e que, se
esperarmos até 2030 para fazer a curva de emissões cair como deveria ter caído
em 2020, simplesmente não conseguiremos cumprir os 2 graus.
A única esperança, portanto, é burlar
o manual de Paris. Subverter o acordo, acelerando sua regulamentação, e
aumentar a ambição das NDCs já em 2018, e não em 2023. Ninguém precisa esperar
até 2018 para saber que está fazendo pouco, nem até 2023 para anunciar que fará
mais.
As Nações Unidas e vários líderes
mundiais já deram um sinal de que são capazes de quebrar algumas regras. A
decisão de correr com a ratificação para botar Paris em vigor quatro anos antes
do prazo foi uma tremenda trolada nos diplomatas – que esperavam ter mais prazo
para trabalhar antes da vigência do acordo. Dez meses atrás, ninguém achava que
isso fosse possível.
Para o bem da humanidade, é bom que
os chefes de Estado e governo continuem se rebelando contra o protocolo. Cada
vez mais.
Claudio Angelo é coordenador de
Comunicação do Observatório do Clima e autor de A Espiral da Morte – como a
humanidade alterou a máquina do clima (Cia das Letras, 2016)